
A história da minha aventura no bairro remonta já há um bom ano. Foi pouco depois do início do semestre pós-Verão, que pela primeira vez ouvi falar do projecto Maria Ajuda Seis de Maio.
Tinha, havia pouco, atravessado o portão do técnico, dirigindo-me apressadamente para o metro, quando o Tomás Macedo, futura cobaia dos meus refogados e das minhas mistelas, que inocentemente apelidávamos de sopas, me interpelou. Falou de uma reunião a ter lugar nessa mesma noite, na qual, para além de se rezar o terço, se iria discutir alguns aspectos do papel de um tal núcleo na vida de um tal projecto relacionado com um bairro (aperceber-me-ia, mais tarde, que o assim designado núcleo Seis de Maio, para além de dar um certo apoio logístico e de estabelecer momentos de oração, englobava, orientava e formava um grupo de rapazes, candidatos a irem viver para o bairro num futuro próximo).
A partir daí, os acontecimentos desenrolaram-se com naturalidade. Frequentava as reuniões semanais, onde se se ia clarificando quem seriam os próximos missionários: Tomás Macedo e eu. Falei com os meus pais, que já sabiam das minhas idas ao núcleo. Deu-se, evidentemente, um processo de análise da questão, discutindo-se alguns aspectos incómodos (como seja o desaparecimento súbito de um filho, a terrível saudade, o anseio pela segurança na minha nova vida ou pior, o reajuste do horário do passeio do cão, com o inevitável e pouco desejado aumento da carga de trabalho para os manos).Mas, contas feitas, os meus pais aderiram bem à ideia, abrindo a porta para o seu rebento abrir asas e voar.
Passaram uns tempos e, finalmente, uma semana antes do começo do segundo semestre, fiz-me vizinho da sempre amada e saudosa estação ferroviária Santa Cruz/Damaia.
E assim foi. Estava formado novo grupo missionário. Duarte Nifo, que já lá estivera e continuava, Macedo e eu.
O princípio, como sempre, foi empolgante e acelerado: conhecer as irmãs, que já estão no bairro há quarenta anos, sempre muito amigas, acolhedoras e cheias de vontade de nos ajudar no que precisássemos; ir à mediateca, sítio onde confluem os jovens do bairro, para os começar a conhecer; deambular pelas “ruas” estreitas e labirínticas, nalgumas das quais dificilmente cabe sequer uma pessoa; fazer compras para a casa (sempre me hei de perguntar qual o meu ar quando, entalado entre o corredor da higiene do lar e dos frescos, tentava perceber o porquê de “Deep and fresh cleaning” merecer o aval dos consumidores portugueses em 2014 enquanto que “New: Shinny and perfect home” parecia esquecido nas prateleiras. Enfim, grandes questões do nosso tempo…).
Aos poucos, as semanas iam passando, e o dia-a-dia definindo-se. Mas, o que é uma semana típica lá em casa? Nesse primeiro semestre tinha aulas de manhã, pelo que saia cedinho com o Macedo (estamos no mesmo curso e aula) rumo ao IST, de comboio e metro. Mantive o hábito de, uma vez por semana, ir almoçar a casa dos meus avós, pelo que nos outros três dias restabelecia forças no domicílio d’Amadora. Nas tardes disponíveis, se não tivesse que estudar, passava-as normalmente na mediateca, onde após as aulas, acorrem os pequenos estudantes do bairro. Este é um espaço crucial, na medida em que é ali que conhecemos novos jovens e estreitamos a amizade com aqueles que já nos são mais próximos. Mantive, a par destas horas passadas na rua e na mediateca, no que a actividades se refere, a co-responsabilidade por um grupo de pioneiros verdinhos, assim como a presença nas reuniões do meu próprio grupo (Missionários em Guerra), ambos com reuniões semanais. Para além disso, continuava a jogar rugby no Direito, onde treinava três vezes por semana, com eventuais jogos no fim desta. No meio de tudo isto, sabia-me terrivelmente bem a ida semanal a casa, onde matava saudades com a família, usufruindo de honras de convidado e deleitando-me com o jantar.
Aos sábados não tínhamos nada agendado, não obstante surgir sempre algo importante para fazer. No dia do Senhor, a lógica era outra. Ficara combinado que os responsáveis pelo coro da missa no Centro Social, (uma dependência das irmãs, colada ao bairro) seríamos nós. Assim, acordávamos, seguíamos para o ensaio, ouvia-se a Santa Missa, cozinhávamos o almocinho e, depois, tínhamos direito a uma breve sesta. Depois, chegava a hora da mãe-peregrina. Resumidamente, no fim da Eucaristia, uma matriarca do bairro escolhia acolher a imagem, por uma semana. Quem a recebesse ficava de organizar um terço em sua casa nessa mesma tarde. Na semana seguinte, levava a mãe-peregrina de volta ao Centro, para outra senhora a levar para casa, e assim por diante. Creio que possam estar já a augurar a amplitude deste evento! De facto, ainda de bucho cheio, íamos rezar o terço, no fim do qual nos esperava uma magnífica refeição. Não havia como recusar! Bem tentávamos gesticular, mas, quando dávamos por nós, já tínhamos um prato de cachupa na mão, a boca ocupada por uma magnífica fatia de cuscuz , uns fritos a esvoaçar na nossa direcção, um copo cheio de sumo, um tupperware a ser enchido (“Vão ver qi dipois lhis sabe uma bem, ou não me chamo eu nha Fatinha”) e, derradeiro argumento, uns pares de olhos sequiosos, quase ameaçadores, tal a veemência com que nos pretendiam arrancar um esgar de satisfação! Sorriso que, dada a qualidade do festim, era genuinamente esboçado. E assim terminava a semana, de barriga cheia e em muito boa companhia.
Creio assim poder definir, simplificadamente, a nossa rotina.
Em relação à vida de comunidade, ou seja, a dinâmica entre os missionários, correu tudo bastante bem. É aliás, neste campo que fiz algumas aprendizagens! Desde já, porque nos temos que habituar a viver com outros dois indivíduos que podem ter hábitos e manias bem diferentes das nossas. Lembro-me da sempre delicada conclusão em relação aos estores: deixar fechados ou, antes, um pouco abertos? Ou outras: pôr ou não molho branco na comidinha? Por aqui ou por ali? Pôr logo a loiça na máquina ou esperar pela limpeza do responsável? Tantas questões onde se faziam notar divergências menores. Em relação às tarefas de casa, tínhamos um pequeno horário, a fim de as distribuir equitativamente: fazer jantar, lavar loiça, preparar oração da noite, lavar roupa,…
(Continua...)
Tinha, havia pouco, atravessado o portão do técnico, dirigindo-me apressadamente para o metro, quando o Tomás Macedo, futura cobaia dos meus refogados e das minhas mistelas, que inocentemente apelidávamos de sopas, me interpelou. Falou de uma reunião a ter lugar nessa mesma noite, na qual, para além de se rezar o terço, se iria discutir alguns aspectos do papel de um tal núcleo na vida de um tal projecto relacionado com um bairro (aperceber-me-ia, mais tarde, que o assim designado núcleo Seis de Maio, para além de dar um certo apoio logístico e de estabelecer momentos de oração, englobava, orientava e formava um grupo de rapazes, candidatos a irem viver para o bairro num futuro próximo).
A partir daí, os acontecimentos desenrolaram-se com naturalidade. Frequentava as reuniões semanais, onde se se ia clarificando quem seriam os próximos missionários: Tomás Macedo e eu. Falei com os meus pais, que já sabiam das minhas idas ao núcleo. Deu-se, evidentemente, um processo de análise da questão, discutindo-se alguns aspectos incómodos (como seja o desaparecimento súbito de um filho, a terrível saudade, o anseio pela segurança na minha nova vida ou pior, o reajuste do horário do passeio do cão, com o inevitável e pouco desejado aumento da carga de trabalho para os manos).Mas, contas feitas, os meus pais aderiram bem à ideia, abrindo a porta para o seu rebento abrir asas e voar.
Passaram uns tempos e, finalmente, uma semana antes do começo do segundo semestre, fiz-me vizinho da sempre amada e saudosa estação ferroviária Santa Cruz/Damaia.
E assim foi. Estava formado novo grupo missionário. Duarte Nifo, que já lá estivera e continuava, Macedo e eu.
O princípio, como sempre, foi empolgante e acelerado: conhecer as irmãs, que já estão no bairro há quarenta anos, sempre muito amigas, acolhedoras e cheias de vontade de nos ajudar no que precisássemos; ir à mediateca, sítio onde confluem os jovens do bairro, para os começar a conhecer; deambular pelas “ruas” estreitas e labirínticas, nalgumas das quais dificilmente cabe sequer uma pessoa; fazer compras para a casa (sempre me hei de perguntar qual o meu ar quando, entalado entre o corredor da higiene do lar e dos frescos, tentava perceber o porquê de “Deep and fresh cleaning” merecer o aval dos consumidores portugueses em 2014 enquanto que “New: Shinny and perfect home” parecia esquecido nas prateleiras. Enfim, grandes questões do nosso tempo…).
Aos poucos, as semanas iam passando, e o dia-a-dia definindo-se. Mas, o que é uma semana típica lá em casa? Nesse primeiro semestre tinha aulas de manhã, pelo que saia cedinho com o Macedo (estamos no mesmo curso e aula) rumo ao IST, de comboio e metro. Mantive o hábito de, uma vez por semana, ir almoçar a casa dos meus avós, pelo que nos outros três dias restabelecia forças no domicílio d’Amadora. Nas tardes disponíveis, se não tivesse que estudar, passava-as normalmente na mediateca, onde após as aulas, acorrem os pequenos estudantes do bairro. Este é um espaço crucial, na medida em que é ali que conhecemos novos jovens e estreitamos a amizade com aqueles que já nos são mais próximos. Mantive, a par destas horas passadas na rua e na mediateca, no que a actividades se refere, a co-responsabilidade por um grupo de pioneiros verdinhos, assim como a presença nas reuniões do meu próprio grupo (Missionários em Guerra), ambos com reuniões semanais. Para além disso, continuava a jogar rugby no Direito, onde treinava três vezes por semana, com eventuais jogos no fim desta. No meio de tudo isto, sabia-me terrivelmente bem a ida semanal a casa, onde matava saudades com a família, usufruindo de honras de convidado e deleitando-me com o jantar.
Aos sábados não tínhamos nada agendado, não obstante surgir sempre algo importante para fazer. No dia do Senhor, a lógica era outra. Ficara combinado que os responsáveis pelo coro da missa no Centro Social, (uma dependência das irmãs, colada ao bairro) seríamos nós. Assim, acordávamos, seguíamos para o ensaio, ouvia-se a Santa Missa, cozinhávamos o almocinho e, depois, tínhamos direito a uma breve sesta. Depois, chegava a hora da mãe-peregrina. Resumidamente, no fim da Eucaristia, uma matriarca do bairro escolhia acolher a imagem, por uma semana. Quem a recebesse ficava de organizar um terço em sua casa nessa mesma tarde. Na semana seguinte, levava a mãe-peregrina de volta ao Centro, para outra senhora a levar para casa, e assim por diante. Creio que possam estar já a augurar a amplitude deste evento! De facto, ainda de bucho cheio, íamos rezar o terço, no fim do qual nos esperava uma magnífica refeição. Não havia como recusar! Bem tentávamos gesticular, mas, quando dávamos por nós, já tínhamos um prato de cachupa na mão, a boca ocupada por uma magnífica fatia de cuscuz , uns fritos a esvoaçar na nossa direcção, um copo cheio de sumo, um tupperware a ser enchido (“Vão ver qi dipois lhis sabe uma bem, ou não me chamo eu nha Fatinha”) e, derradeiro argumento, uns pares de olhos sequiosos, quase ameaçadores, tal a veemência com que nos pretendiam arrancar um esgar de satisfação! Sorriso que, dada a qualidade do festim, era genuinamente esboçado. E assim terminava a semana, de barriga cheia e em muito boa companhia.
Creio assim poder definir, simplificadamente, a nossa rotina.
Em relação à vida de comunidade, ou seja, a dinâmica entre os missionários, correu tudo bastante bem. É aliás, neste campo que fiz algumas aprendizagens! Desde já, porque nos temos que habituar a viver com outros dois indivíduos que podem ter hábitos e manias bem diferentes das nossas. Lembro-me da sempre delicada conclusão em relação aos estores: deixar fechados ou, antes, um pouco abertos? Ou outras: pôr ou não molho branco na comidinha? Por aqui ou por ali? Pôr logo a loiça na máquina ou esperar pela limpeza do responsável? Tantas questões onde se faziam notar divergências menores. Em relação às tarefas de casa, tínhamos um pequeno horário, a fim de as distribuir equitativamente: fazer jantar, lavar loiça, preparar oração da noite, lavar roupa,…
(Continua...)