
Para ajudar a orientar a vida em comunidade e delinear caminhos em relação à missão externa (interacções com as pessoas do bairro, jovens, etc) contávamos com a presença do Pe. Diogo e do seminarista Juan Pablo que se juntavam a nós depois do jantar, para pequenas reuniões.
Foi aí que percebemos quais os métodos certos a usar no nosso principal objectivo: o trabalho com os jovens com idades entre os 8/9 até aos 12/13 anos. Concordámos que não nos devíamos seduzir pela tentação do número, isto é, a de ter o máximo número de miúdos possível nas actividades (levámos seis deles ao acampamento). Escolhemos trabalhar somente com rapazes (só nas actividades de desenvolvimento dum grupo, evidentemente que, no dia-a-dia nos dávamos com todos).
Fomo-nos apercebendo qual era a lógica do bairro em relação a visitantes exteriores. O que não falta às crianças do bairro, paradoxalmente, são actividades. Seja com a escola, com iniciativas de voluntários, nas colónias de férias ou com o próprio Centro Social, contam-se pelos dedos da mão os que ainda não foram ao estádio do Benfica, ao Oceanário, aos museus da Amadora, à praia, ao Pavilhão do Conhecimento, entre tantos outros locais. Todas as semanas, há aulas de inglês, dança, artes plásticas, música, pintura e jogos de futebol organizados. O que é muito bom! No entanto, este paradigma criou uma curiosa ligação entre voluntários e usufrutuários: do tipo comercial. Há uma tal avalanche de ofertas, que esta se torna em procura, a procura de alguém a quem oferecer algo. A título ilustrativo, cito uma mãe que, após lhe termos respondido que precisava de dar um farnel ao filho, para este levar para o passeio que organizáramos, replicou, muito admirada: “Mas vocês precisam do meu filho na vossa excursão! Ainda me pedem que lhe pague o almoço?!”. Ou seja, a abundância de ofertas gratuitas alterou a ideia clássica do voluntariado. Do “Eu agradeço a ajuda que me é disponibilizada” passou-se para o “Vá, vai lá participar na actividade deles, que precisam de ti para terem sucesso, filhote”. As pessoas tornam-se selectivas, aumentando a sua exigência face aos voluntários. Isto, devido à gratuidade das acções voluntárias. Não no sentido monetário, pois essa pode ser, de facto, uma exigência circunstancial, mas em relação ao tempo, ao sacrifício e ao trabalho. Os programas são encarados como uma pastilha-elástica: recebe-se, mastiga-se, deita-se fora e espera-se pela próxima. Não há uma envolvência conjunta, de voluntários e crianças, a fim de verem algo crescer e desenvolver-se a partir do seu trabalho. Esta foi uma importante noção que adquirimos, esforçando-nos sempre muito a combater essa tendência. Para o exemplificar, recordo a preparação do acampamento: mostrámos a todos, com umas contas rápidas, qual seria o custo da nossa jornada, o que os deixou estupefactos (sempre acharam que as coisas valiam muito pouco). Convencemo-los de que que se não angariássemos dinheiro, ninguém ia a lado nenhum. Assim, decidimos cozinhar e vender bolos num domingo, depois da missa; noutra ocasião, passámos um Sábado a trabalhar em barro, para fazer mealheiros para que, cada um, por pequenos sacrifícios, pudesse ir poupando para o acampamento. Escusado será dizer que todas estas iniciativas não terão dado mais que uma ínfima percentagem do custo total, tendo nós acabado por pagar quase tudo. Só que este pormenor de os envolver na preparação, faz toda a diferença (não monetária, como se viu, mas a nível de entrega e compromisso).
Foi aí (nas tais reuniões) que analisámos experiências para chegar a conclusões: o que pensar dum passeio a Monsanto? O que correu bem? E mal?. Assim, no fim de muitas tentativas e actividades (algumas bastante fracassadas), começamos, enfim a “obter” alguns resultados. Temos agora um proto-grupo, mais estável e dedicado, com hipóteses de vir a dar em alguma coisa, muito devido ao excelente acampamento que tivemos no Verão. Agora, é dar tempo ao tempo e ver como tudo se desenvolve.
Penso que num relato deste tipo é também relevante abordar algumas ideias pré-concebidas que, na vivência do dia-a-dia, praticamente se desconstroem.
A segurança. Em relação a este tópico, devo dizer que nunca fui assaltado, nem abordado com quaisquer intenções maldosas. Saio de casa com computador e volta a casa com computador. Não tenho, nesse sentido, portanto, qualquer razão de queixa. Por outro lado, mais que uma vez, acordei a meio da noite ao som das festas de polícias e “gangsters”. Mas todo este aparato de tiros, de índios e de cowboys, quando surge, o que é raro, fica circunscrito a uma pequena área e passa-se de noite.
No que aos estudos se refere, penso que o medo de diminuir o tão almejado sucesso académico é relativamente infundado. Trata-se apenas de uma questão de organização. Estuda-se muitíssimo bem na nossa casinha! Aliás, desafio mesmo o meu querido interlocutor a vir sentir o doce e suave toque do pinho das nossas secretárias ou, se for de manter os pés bem assentes na terra, a categoria do soalho do escritório (sim, temos um escritório). Existe sempre a tentação, quando as coisas possam estar pior, academicamente, de se alhear dessa realidade em favor do bairro. Ai é preciso ter cuidado. Por isso mesmo, um dos requisitos da vinda para o bairro é a estabilidade nos estudos - daí se evitar, preferencialmente, missionários do primeiro ano. De resto, a única dificuldade surgia, por vezes, aos Domingos, quando a nossa preenchida agenda limitava grandemente o precioso tempo de estudo, nas épocas de exame.
“E a vida social, como é que passou a ser? Deixaste de ver toda a gente”. Esta terá sido das perguntas que mais frequentemente, amigos e conhecidos, me faziam. Não nego que a maior distância ao epicentro do convívio da juventude e a outros estabelecimentos, por malta amiga frequentados, tenha esmorecido o meu fervor relacional. No entanto, é bem sabido que todos os caminhos vão dar a Santos, onde a vida é alegre e o amor sorri. Basta-me, para saciar a sede de converseta, entrar no carrinho que, em poucos minutos, lá me ponho. Assim, fazendo um balanço e, avaliando o que alguns amigos vêm dizendo, talvez tenha estado um pouco mais “desaparecido”. Mas não pelo bairro em si, antes pelo meu próprio feitio. De facto, se quando vivia em Santos não era assíduo na noite, é natural que o esforço de me deslocar de e para a Damaia, faça os programas perder alguma atractividade.
Concluindo, após um primeiro semestre de missão concluído e com um segundo a decorrer, creio poder elaborar algumas considerações.
Assumir este projecto, como parte da nossa história de vida, não está isento de riscos. É verdade que é algo desafiante, e mais certo é que há dificuldades a ultrapassar. Contudo, a experiência é de tal modo rica, diferente e verdadeira que, em retrospectiva, todos os senãos perdem relevância. Digo-o, não só pelo que me ajudou, pelo que me transformou ou me enriqueceu mas, sobretudo, pela oportunidade que se tem de moldar as pessoas, de lhes levar Jesus. Nesta situação concreta, essa possibilidade é apenas mais gritante (não precisamos de viver num bairro para o fazer!). É-o, aliás, na proporção do sofrimento. As muitas histórias dramáticas, que se escondem por trás destes muros meio destruídos e graffitados, despertam nas pessoas, se não uma postura agressiva e delinquente (naqueles que nessa estratégia arranjam caminho), um sentido humano muito forte, uma enorme vontade de ser amadas, qual espectro do inerente, ainda que escondido, desejo pelo transcendente. Esta disposição para o divino, temo-la todos, só que, muitas vezes, demasiado abafada. Como a pode abafar um miúdo que tem um pai preso; que tem uma mãe viciada; que tem casa num bairro de lata; que tem medo de ser gozado; que tem medo da pancadaria que apanha da tia? Este sofrimento é sal: corre o risco de estragar tudo, mas pode também, misteriosamente, destacar e intensificar o que de bom temos. É por isso que temos de ir ao encontro desta ânsia de amor. Eles precisam de esperança, de Deus, dos Seus instrumentos. Precisam de se saber queridos e orientados.
Infelizmente, dir-me-ão, com razão, que, apesar de tudo, no futuro, poucos se hão-de lembrar de nós e que todo o trabalho corre o perigo de ser em vão. Mas, como lembravam as irmãs com toda a sua sabedoria e experiência, basta um. Basta que apenas um consiga fugir do ciclo vicioso desta vida. Basta que um se encontre com os outros. Basta que um possa conhecer a Deus. Aí, direi, valeu a pena. E é por isso que sei que faz sentido viver no bairro, que faz sentido o projecto Maria Ajuda Seis de Maio.
Foi aí que percebemos quais os métodos certos a usar no nosso principal objectivo: o trabalho com os jovens com idades entre os 8/9 até aos 12/13 anos. Concordámos que não nos devíamos seduzir pela tentação do número, isto é, a de ter o máximo número de miúdos possível nas actividades (levámos seis deles ao acampamento). Escolhemos trabalhar somente com rapazes (só nas actividades de desenvolvimento dum grupo, evidentemente que, no dia-a-dia nos dávamos com todos).
Fomo-nos apercebendo qual era a lógica do bairro em relação a visitantes exteriores. O que não falta às crianças do bairro, paradoxalmente, são actividades. Seja com a escola, com iniciativas de voluntários, nas colónias de férias ou com o próprio Centro Social, contam-se pelos dedos da mão os que ainda não foram ao estádio do Benfica, ao Oceanário, aos museus da Amadora, à praia, ao Pavilhão do Conhecimento, entre tantos outros locais. Todas as semanas, há aulas de inglês, dança, artes plásticas, música, pintura e jogos de futebol organizados. O que é muito bom! No entanto, este paradigma criou uma curiosa ligação entre voluntários e usufrutuários: do tipo comercial. Há uma tal avalanche de ofertas, que esta se torna em procura, a procura de alguém a quem oferecer algo. A título ilustrativo, cito uma mãe que, após lhe termos respondido que precisava de dar um farnel ao filho, para este levar para o passeio que organizáramos, replicou, muito admirada: “Mas vocês precisam do meu filho na vossa excursão! Ainda me pedem que lhe pague o almoço?!”. Ou seja, a abundância de ofertas gratuitas alterou a ideia clássica do voluntariado. Do “Eu agradeço a ajuda que me é disponibilizada” passou-se para o “Vá, vai lá participar na actividade deles, que precisam de ti para terem sucesso, filhote”. As pessoas tornam-se selectivas, aumentando a sua exigência face aos voluntários. Isto, devido à gratuidade das acções voluntárias. Não no sentido monetário, pois essa pode ser, de facto, uma exigência circunstancial, mas em relação ao tempo, ao sacrifício e ao trabalho. Os programas são encarados como uma pastilha-elástica: recebe-se, mastiga-se, deita-se fora e espera-se pela próxima. Não há uma envolvência conjunta, de voluntários e crianças, a fim de verem algo crescer e desenvolver-se a partir do seu trabalho. Esta foi uma importante noção que adquirimos, esforçando-nos sempre muito a combater essa tendência. Para o exemplificar, recordo a preparação do acampamento: mostrámos a todos, com umas contas rápidas, qual seria o custo da nossa jornada, o que os deixou estupefactos (sempre acharam que as coisas valiam muito pouco). Convencemo-los de que que se não angariássemos dinheiro, ninguém ia a lado nenhum. Assim, decidimos cozinhar e vender bolos num domingo, depois da missa; noutra ocasião, passámos um Sábado a trabalhar em barro, para fazer mealheiros para que, cada um, por pequenos sacrifícios, pudesse ir poupando para o acampamento. Escusado será dizer que todas estas iniciativas não terão dado mais que uma ínfima percentagem do custo total, tendo nós acabado por pagar quase tudo. Só que este pormenor de os envolver na preparação, faz toda a diferença (não monetária, como se viu, mas a nível de entrega e compromisso).
Foi aí (nas tais reuniões) que analisámos experiências para chegar a conclusões: o que pensar dum passeio a Monsanto? O que correu bem? E mal?. Assim, no fim de muitas tentativas e actividades (algumas bastante fracassadas), começamos, enfim a “obter” alguns resultados. Temos agora um proto-grupo, mais estável e dedicado, com hipóteses de vir a dar em alguma coisa, muito devido ao excelente acampamento que tivemos no Verão. Agora, é dar tempo ao tempo e ver como tudo se desenvolve.
Penso que num relato deste tipo é também relevante abordar algumas ideias pré-concebidas que, na vivência do dia-a-dia, praticamente se desconstroem.
A segurança. Em relação a este tópico, devo dizer que nunca fui assaltado, nem abordado com quaisquer intenções maldosas. Saio de casa com computador e volta a casa com computador. Não tenho, nesse sentido, portanto, qualquer razão de queixa. Por outro lado, mais que uma vez, acordei a meio da noite ao som das festas de polícias e “gangsters”. Mas todo este aparato de tiros, de índios e de cowboys, quando surge, o que é raro, fica circunscrito a uma pequena área e passa-se de noite.
No que aos estudos se refere, penso que o medo de diminuir o tão almejado sucesso académico é relativamente infundado. Trata-se apenas de uma questão de organização. Estuda-se muitíssimo bem na nossa casinha! Aliás, desafio mesmo o meu querido interlocutor a vir sentir o doce e suave toque do pinho das nossas secretárias ou, se for de manter os pés bem assentes na terra, a categoria do soalho do escritório (sim, temos um escritório). Existe sempre a tentação, quando as coisas possam estar pior, academicamente, de se alhear dessa realidade em favor do bairro. Ai é preciso ter cuidado. Por isso mesmo, um dos requisitos da vinda para o bairro é a estabilidade nos estudos - daí se evitar, preferencialmente, missionários do primeiro ano. De resto, a única dificuldade surgia, por vezes, aos Domingos, quando a nossa preenchida agenda limitava grandemente o precioso tempo de estudo, nas épocas de exame.
“E a vida social, como é que passou a ser? Deixaste de ver toda a gente”. Esta terá sido das perguntas que mais frequentemente, amigos e conhecidos, me faziam. Não nego que a maior distância ao epicentro do convívio da juventude e a outros estabelecimentos, por malta amiga frequentados, tenha esmorecido o meu fervor relacional. No entanto, é bem sabido que todos os caminhos vão dar a Santos, onde a vida é alegre e o amor sorri. Basta-me, para saciar a sede de converseta, entrar no carrinho que, em poucos minutos, lá me ponho. Assim, fazendo um balanço e, avaliando o que alguns amigos vêm dizendo, talvez tenha estado um pouco mais “desaparecido”. Mas não pelo bairro em si, antes pelo meu próprio feitio. De facto, se quando vivia em Santos não era assíduo na noite, é natural que o esforço de me deslocar de e para a Damaia, faça os programas perder alguma atractividade.
Concluindo, após um primeiro semestre de missão concluído e com um segundo a decorrer, creio poder elaborar algumas considerações.
Assumir este projecto, como parte da nossa história de vida, não está isento de riscos. É verdade que é algo desafiante, e mais certo é que há dificuldades a ultrapassar. Contudo, a experiência é de tal modo rica, diferente e verdadeira que, em retrospectiva, todos os senãos perdem relevância. Digo-o, não só pelo que me ajudou, pelo que me transformou ou me enriqueceu mas, sobretudo, pela oportunidade que se tem de moldar as pessoas, de lhes levar Jesus. Nesta situação concreta, essa possibilidade é apenas mais gritante (não precisamos de viver num bairro para o fazer!). É-o, aliás, na proporção do sofrimento. As muitas histórias dramáticas, que se escondem por trás destes muros meio destruídos e graffitados, despertam nas pessoas, se não uma postura agressiva e delinquente (naqueles que nessa estratégia arranjam caminho), um sentido humano muito forte, uma enorme vontade de ser amadas, qual espectro do inerente, ainda que escondido, desejo pelo transcendente. Esta disposição para o divino, temo-la todos, só que, muitas vezes, demasiado abafada. Como a pode abafar um miúdo que tem um pai preso; que tem uma mãe viciada; que tem casa num bairro de lata; que tem medo de ser gozado; que tem medo da pancadaria que apanha da tia? Este sofrimento é sal: corre o risco de estragar tudo, mas pode também, misteriosamente, destacar e intensificar o que de bom temos. É por isso que temos de ir ao encontro desta ânsia de amor. Eles precisam de esperança, de Deus, dos Seus instrumentos. Precisam de se saber queridos e orientados.
Infelizmente, dir-me-ão, com razão, que, apesar de tudo, no futuro, poucos se hão-de lembrar de nós e que todo o trabalho corre o perigo de ser em vão. Mas, como lembravam as irmãs com toda a sua sabedoria e experiência, basta um. Basta que apenas um consiga fugir do ciclo vicioso desta vida. Basta que um se encontre com os outros. Basta que um possa conhecer a Deus. Aí, direi, valeu a pena. E é por isso que sei que faz sentido viver no bairro, que faz sentido o projecto Maria Ajuda Seis de Maio.